Caminhava tranquilamente pela
rua XV de Novembro quando cruzei com um senhor já bem idoso
cantarolando uma antiga música caipira que eu tinha ouvido pela
última vez há uns vinte anos. Entrei em uma loja de calçados
chamada “Magic” e fui atendido por uma simpaticíssima moça
chamada Paula.
A vendedora trouxe-me o sapato
que eu escolhera, no número que eu solicitara, fazia tudo exatamente
do jeito que eu queria, e quando eu provava o calçado, ela olhou-me
com aquele jeito meigo e me disse:
- Se apertá no carcanhá e só
falá que vou trocá.
Depois de me ter dito aquelas
palavras, o sapato poderia ter apertado no peito do pé, no dedão do
pé, no coração do pé, que eu o levaria de qualquer jeito, para
ser sincero, se ela tivesse me oferecido mais uns três ou quatro
pares, eu pagava por eles, mas ela não faria isso, ela não usaria
do poder que ela certamente sabia que exercia sobre mim para me fazer
comprar algo que eu não precisasse. Ela era honesta demais para
isso.
Deixei a loja com uma vontade
imensa de comer algo que eu sequer me lembrava que gostava, mas que
todos aqueles acontecimentos me fizeram sentir como se eu a mordesse:
amarela como ouro, meus dentes sentiam necessidade de destroçá-la,
minha boca era só desejo, não havia como negar, mas onde, naquela
hora, eu poderia encontrá-la.
Quase não acreditei quando
meus ouvidos captaram aquele som. Era sorte demais para um só dia.
Parei de caminhar, olhei para a direção de onde vinha o som. Uma
Kombi anunciava:
- Pamonhas, pamonhas,
pamonhas. Pamonhas de Piracicaba.
Acenei para o carro que
prontamente parou.
- Essas pamonhas são boas
mesmo? – perguntei.
- São especiais. Não tem
erro, pode comprar sem medo. São legítimas pamonhas de Piracicaba.
Como minha vontade de comer
pamonhas era imensa, comprei logo três, acreditando que fossem mesmo
de Piracicaba, embora o vendedor eu constatasse que não fosse de lá.
Mais duas quadras de caminhada
e estava em casa. Só aguentei esperar porque já estava muito perto.
Olhei então para aquele pacotinho embrulhado com palha verde de
milho e o desembrulhei como uma criança que abria o seu tão
esperado presente de natal, porém sequer dei tempo de meus olhos
admirarem o meu tesouro, meu desejo era maior que estes pequenos
prazeres do meio do caminho. Minha boca se abriu e em uma só dentada
arrancou quase a metade da pamonha.
Não sei explicar qual foi o
meu sentimento naquele instante, mas posso afirmar que deu muito
trabalho para limpar o sofá e levou certo tempo para eu conseguir
tirar aquele gosto da boca.
Pamonha de Piracicaba! Só se
a mãe dele se chamar Piracicaba.
Terminei o ontem no sofá,
chorando sozinho. Tudo o que me acontecera, fizera-me lembrar de
Serma – escrito desta forma mesmo -. Na verdade, nem sei mais se
chorei por ela, se chorei pela cidade dela ou se chorei por tudo
estar tão diferente.
Duas décadas e alguns anos
atrás fui passar minhas férias no interior. Tinha catorze para
quinze anos, não era a minha primeira vez naquela cidade, mas foi a
que marcou minha vida.
Em meu primeiro domingo na
cidade, meus primos me levaram para eu conhecer o que seria a minha
primeira paixão piracicabana, o Nhô Quim. O jogo era XV de Novembro
de Piracicaba X Corinthians. O meu timão que tinha Neto, Ronaldo e
Tupãzinho não suportou a força do Nhô Quim que venceu por 2 X 0,
entrei no Barão gambá e saí torcendo para o alvinegro
piracicabano.
E não era só gambá, podia
vir bambi, sardinha, porco que lá no Barão quem mandava era o XV.
É, quem mandava, porque o grande XV de Novembro de Piracicaba só é
forte hoje na memória de seus torcedores.
Meu primeiro porre, porre
mesmo, de não me lembrar do que fiz, foi durante aquelas férias. A
última cena de que me lembro foi: Eu e meus primos abraçados,
fedidos, sujos, sem motivo algum para esboçar um sorriso, cantando
“O riiio de Piracicaaaba vai joooogá aguá prá fora, quaaaando
chegá a água dos zóóóóios de arguém que chora”. Será que
ainda existe rio em Piracicaba?
O basquete feminino brasileiro
era um dos melhores do mundo naquela época, e havia a rivalidade
Piracicaba X Sorocaba. Deus me livre perder para aquele povo caipira
de Sorocaba, os sorocabanos pensavam a mesma coisa, eles tinham a
rainha deles, Hortência, nós, uma mulher que não jogava, fazia
mágica, “Magic Paula”. O ginásio lotava e íamos ao delírio
com a Paula, a melhor jogadora de basquete que o Brasil já teve
jogava lá em Piracicaba. Bom, hoje jogando em Piracicaba tem... é
melhor deixar pra lá.
Será que aquelas férias não
aconteceram de verdade? Ou foram algumas sementinhas que encontraram
terreno fértil em minha imaginação e desenvolveram-se
esplendorosamente?
Será que nunca existiu esse
time de futebol em Piracicaba que fazia os grandes pensar que um
empate no Barão seria vitória?
Devo acreditar que o rio de
Piracicaba nunca foi homenageado na música brasileira?
Quando vi Fidel brincar
dizendo que não entregaria a medalha de ouro àquela jogadora que
havia arrasado a defesa da seleção cubana de basquete feminino no
Pan de Havana, teria eu sonhado que ela jogava em Piracicaba?
Já não sei mais o que é
ilusão, talvez o mundo todo seja uma ilusão, ou uma pamonha. Sim,
porque também me recordo do sabor das pamonhas que comi naquelas
férias. E hoje, tudo o que ouço sobre Piracicaba é a famosa frase:
“Pamonhas de Piracicaba”. Todo mundo faz pamonha de Piracicaba,
por que não saem anunciando: “Pamonhas de Campinas”, “Pamonhas
de Jundiaí”, “Pamonhas de Araraquara”. Chega de nos enganar.
Eu quero uma legítima pamonha de Piracicaba! Se é que ela ainda
existe.
Ia terminar este texto, mas me
lembrei de Serma, ela foi o motivo principal de eu escrevê-lo. Não,
acho que não foi, mas mesmo assim vou falar dela.
Eu a conheci no meu último
dia daquelas férias, avistei-a de longe e ela era tão linda,
cheguei bem próximo dela e galanteei:
- Sua boca deve ter um sabor
incomparável, adoraria prová-la.
Ela respondeu-me com um
jeitinho tão sincero, tão simples:
- Qué prová, se num gostá e
só falá que vou melhorá.
Provei e nunca mais esqueci.
Passei quase um ano esperando pelas próximas férias e logo que
voltei à casa do meu tio, fui correndo procurá-la. Para minha
tristeza, ela havia falecido.
Por isso não sei mais o que
foi realidade, o que foi ilusão, embora eu tenha vivido tudo isso
intensamente. Entristecer-me-ia muito saber que nunca aconteceu nada
disso, que nunca existiu Serma alguma, que Piracicaba é uma cidade
que eu inventei, que ninguém sabe o que é uma pamonha e talvez até
que eu tenha saído da mente de algum escritor maluco. Pensando
bem...